Tuesday, June 29, 2010

"LAVRE - Uma Família do Alentejo" - prefácio de José Saramago


De como José Saramago escreveu um prefácio como acto de justiça, ler Aqui

« Nasci em Lisboa, mas cheguei à pequena vila de Lavre, no Alto Alentejo, pelos meus seis anos de idade. Era a terra de origem duma parte da minha família materna. Não era o caso dos meus avós maternos, que eram ribatejanos, de Canha e Santana do Mato, mas foi ali, em Lavre, que sedearam cedo a sua vida. Lavre era por essa altura uma pequena vila sem nenhuma importância no mapa sociológico do Alentejo a não ser a que localmente lhe era emprestada pelo bulício próprio do regresso do trabalho, de homens e mulheres, ao sábado, no final da tarde, após uma semana dura a que a agricultura e os campos se tinham encarregue de sublinhar a rudeza com que tinham que ganhar um salário que não dava para ir além de um "avio" semanal, feito nas escassas lojas do comércio, onde as dores da labuta e da vida se inscreviam em colunas de contas a débito de suor e lágrimas de quem se desgastava, a ferozes golpes de desumanidade, numa terra que não era sua.» (...)

( Jacinto Lourenço)

Saturday, June 19, 2010

A Questão Saramago


José Saramago, coerente como era entre escrita e pensamento anti-religioso, hoje diria «já não Sou», diante das reportagens em directo: «José Saramago vem», «a coroa de flores que acompanhava José Saramago», etc.etc..
«Já não sou», «Não ressuscitei, nem regresso». Diria, se fosse possível ao Homem falar depois do derradeiro Problema que terá de enfrentar.
Como escreveu um dia Camus, a propósito de alguém que colocou uma brevíssima nota de suicídio na porta do seu quarto: «Entrem, estou enforcado»- e já não «estava», nem «era» -, o Nobel da Literatura português já não É.
Do ponto de vista do Ser, está para lá do espaço-tempo kantiano.
É mais exacto dizer-se: o corpo de José Saramago, «os restos mortais» de José Saramago, é mais exacto para a polissemia das imagens mentais ou gráficas da Morte.
E isso vem colocar a Questão ( da Morte), independentemente de qualquer posição, crente ou ateia, religiosa ou anti-religiosa, pró-eclesial ou anti-clerical.
O escritor, agora desaparecido, afirmou, consubstanciando mais a Morte do que Deus, no seu típico modo de se expressar, que "A morte é a inventora de Deus".
É um pensamento, diria melhor uma frase de entrevista que, retirada do contexto, funciona como um axioma; mas não é, é tão-só a contextualização da desculpa da fragilidade humana, da mortalidade, uma constatação ateísta de um facto se fossemos imortais, alegadamente não precisaríamos de Deus, por essa razão universal, segundo Saramago, a Morte é a inventora do Divino. «Se fossemos imortais não teríamos nenhum motivo para inventar um Deus.»-foi deste modo que concluiu.
Sendo assim a Morte tão poderosa, segundo Saramago, ao inventar uma Entidade como Deus, coloca-se a questão com Q maiúsculo: E Agora?
A Questão de Deus, respondida por Deus ao Escritor, poderemos interpretá-la na Bíblia; a resposta de José Saramago, essa, jamais; poderemos construí-la ficcionalmente, em literatura, como ele fez, não mais do que isso.

Tuesday, June 15, 2010

Uma Habitação no Exílio


Sentados sobre mais de um milhão de metros
cúbicos de lágrimas
vendo passar Babilónia reflectida
uma ilusão nas águas
passavam largas horas com a memória
em Sião
com a saudade em risco de se perder
largas horas olhando o silêncio
pendurado nos salgueiros
Ouviam a solidão dos que pediam
que entoassem as canções
do Senhor em terra estranha
como uma água sem fonte
e desolada.

Monday, June 07, 2010

Experimento ver-me com os olhos



para Maria Joaquina Parreira

Experimento ver-me com os olhos
de minha mãe, ela pode amamentar-me
pode medir-me e ver que não cresceu
o meu corpo, pode censurar
meus olhos mineiros
a procurarem poesia
e dizer - filho, os teus olhos
estão mais magros -
Tento ver-me com os olhos
de minha mãe, podem chorar
com as minhas lágrimas
Mas eu não me alcanço
como ela faz todos os dias.

3/06/2010

Saturday, June 05, 2010

Os Protestantes


Brissos Lino

“Com os protestantes, por exemplo. Eles reuniam-se numa pequena casa no cimo da vila, por detrás do quartel. Não tínhamos nada contra eles, sabíamos vagamente que eram diferentes e não resistíamos à tentação de os provocar. Mas um dia o meu pai soube e bateu-me. Foi das poucas vezes que o fez. Quem não respeita os outros não se respeita a si mesmo, disse. E estava muito zangado.”
(Manuel Alegre, Alma, p.114, ed. Leya, Lisboa, 2008)


Neste romance de Manuel Alegre (“Alma”), publicado pela primeira vez em 2001, o escritor português recupera memórias de infância à volta do ambiente social e político da sua terra, Águeda, aqui representada por uma pequena cidade de província denominada Alma.

As tensões monárquicos-republicanos, num primeiro momento, e depois Estado Novo-reviralho, traçam a história das gentes da terra, a partir do seu imaginário infantil, numa narrativa ao estilo da dinâmica autobiográfica.

Sem querer, o autor acaba por traçar um retrato simples mas profundo de uma nova realidade à época, o surgimento de pequenas comunidades de fé protestante no interior do território luso, apenas num pequeno parágrafo.

Sobretudo, interpreta com mestria um misto de estranheza, algum receio da diferença e antagonismo embrulhados nalguma desconfiança, uma caldeirada de sentimentos populares que então os protestantes despertavam no povo, independentemente da sua condição social.

Desde logo pelo facto de se reunirem em casas comuns e não templos construídos de raiz, devido às dificuldades da lei, que não permitia outros espaços dedicados ao culto religioso com fachada directamente para a rua, a não ser templos católicos, mas também pelas óbvias dificuldades económicas de quem não podia contar com nenhuma ajuda das entidades públicas e estava limitado pelas leis e pela governação quanto a possíveis acções públicas de promoção e divulgação da sua fé.

Depois porque, não se podendo dar a conhecer abertamente, eram vítimas da desconfiança geral de um regime que não era tolerante e de uma sociedade que não era democrática.
Acontece que esta situação foi muitas vezes agravada pela animosidade dos sacerdotes que, em muito lugares, tudo fizeram para virar o povo contra esses tais “protestantes”, acusando-os, de forma injusta e patética, de serem “comunistas”, “maçons” ou antipatriotas”. Para já não falar das estórias mirabolantes que se inventavam sobre os seus actos de culto.

“Não tínhamos nada contra eles”, afirma o protagonista da estória, “mas sabíamos vagamente que eram diferentes”. E por isso mesmo “não resistíamos à tentação de os provocar”, adianta. Embora isto se passe com crianças e se trate de literatura de ficção, não deixa de ser uma marca de intolerância, de falta de aceitação da diferença, de falta de respeito pelo Outro que caracterizavam a sociedade portuguesa da primeira metade do século vinte.

O que vale é que o pai do menino Duarte Faria era um homem de princípios e lhe deu uma grande lição de vida, porque percebeu que o petiz necessitava de aprender a respeitar-se a si mesmo. E a melhor forma de o fazer era através dos outros. Por isso fez questão de lhe explicar bem a ideia, através de palavras, mas sem prescindir ainda de uma preciosa ajuda pedagógica: chegando-lhe a roupa ao pêlo…