Tuesday, July 19, 2011

As Quedas

No Paraíso, Adão foi de Queda em Queda após a desobediência. Aplicaríamos aqui um verso clássico do poeta alemão Rainer Maria Rilke para caracterizar a espiral de solidão, de medo, de angústia, de deceção consigo próprio oriundas do interior de Adão: “ O belo apenas é o começo do terrível”.
A falha do homem (de Adão), na Aliança ou Dispensação da Inocência, lançou-o em várias Quedas. A sua experiência espiritual, existencial e moral com Deus/o Criador entrou pela porta errada da rebeldia e da desobediência e tais quedas revelaram-se na chamada Aliança Adâmica, de inocente passou a responsável e os custos dessa mudança foram tremendos para a Humanidade.

A Queda
No século XIX, o filósofo cristão Kierkegaard, pioneiro na definição da angústia do Ser humano como um efeito, apresentou a causa da mesma: a Queda no Jardim do Éden. Desde tal definição até hoje, tem-se manifestado grande dificuldade em traduzir a palavra “angst”, que serviu de base para o pensamento kierkegaardiano, no que concerne, designadamente, ao existencialismo cristão. O conceito traduzido, que tem vindo a ser usado, é “ansiedade”.
Não é novo este termo, nos seus efeitos visíveis. Adão terá sentido profunda e indefinível ansiedade no Paraíso, quando necessitou de se esconder de Deus e, nesse tempo de espera, revolver os seus arcanos angustiadamente e modificar o seu olhar sobre o próprio corpo.

O livro do Génesis narra o primeiro acontecimento físico da Queda, a expulsão do Jardim: “E, expulso o homem”(Gn 3,24)

O que tal expulsão significou, não esteve apenas no campo de uma deslocalização de um sítio para outro, de dentro para fora do lugar edénico; a expulsão do jardim foi a circunstância /o aspecto visível de um desligamento da Comunhão íntima com o Criador, operado no momento dito da Queda, quando Adão (o Homem) sucumbiu à tentação e se tornou desobediente a Deus. Antes da expulsão física, houve a espiritual e depois a existencial, se quisermos, e ainda a social, para aplicarmos termos que hoje nos são comuns.

Muito e incontável tempo depois, em pleno início da Igreja, Paulo de Tarso escreve que “todos pecaram e estavam destituídos da glória de Deus”(Rm 3,23)

Outra queda
Em vão procuramos nas Concordâncias clássicas e antigas, como a Cruden's ou a Concordances Verbales de Louis Segond, a palavra Queda para exprimir a passagem de Adão da inocência ao pecado. Não parece que disponhamos desse vocábulo para sublinhar a narrativa do Génesis.
O NT, apenas como um exemplo, quando refere “queda”, entre outras acepções usa este termo em relação a Israel (Rm 11:11). E por aí, expressões com os sentidos verbal e substantivo.
O termo “Queda” do homem é de uso da teologia e muito tardio já. Pertence, contudo, à história da salvação, não pode haver soteriologia séria que o não inclua. Pertence à pregação (ao querigma) mais do que à arqueologia dos termos bíblicos relativos ao Pecado original.
Assim surge desde as origens da linguagem grega ou hebraica como apostasia, rebeldia(rebelar-se), desviar, abandono, separação, etc. e, finalmente, perdição e ruína, no sentido moral e religioso.
Vários teólogos protestantes pós Kierkegaard usaram o termo para exprimir suas ideias, uns que se tratava de um mito narrativo para falar da condição do homem face a Deus, outros um paradigma para falar do “homem fora da vida divina”; Barth chama-lhe mesmo a “queda do homem”. A “queda” é a condição humana, numa palavra, o Pecado.
Seguindo a narrativa de Génesis 3, apercebemo-nos que da chamada queda original resultaram várias outras quedas.

A queda existencial ou psicológica.
Ao contrário do que Kierkegaard entendia, Adão (o homem) não “estava fora” da raça humana antes de desobedecer, de transgredir o limite imposto por Deus. Possuía livre arbítrio e relação espiritual com o Criador bastantes para escolher, não ainda entre o Bem e o Mal, (Gn 2, 16-17), mas entre ser ou não fiel ao Seu Amigo, com o qual se encontraria todas as tardes ( Gn 3,8), que lhe levou os animais e as aves para “ver como (Adão/o homem) lhes chamaria” (Gn 2,19).
Com efeito, Adão era -como sabemos pelas Escrituras Sagradas- o primeiro Homem da raça humana. Adão era um indivíduo concreto. A sua relação com toda a Criação era essencial, advinha da sua essência de homem criado à imagem de Deus, a sua existência não era simbólica. Essa existência de harmoniosa relação com o Criador foi destruída, Adão passou a viver entregue a si próprio, agora sabia o Bem e o Mal. A sua liberdade estruturar-se-ia a partir daí entre estas duas categorias.
Na sua busca incessante de um existencialismo cristão, Kierkegaard definiu a universalidade da Queda, agora com absoluta razão ao escrever: “a queda de Adão desenha a queda de todo o homem”

Queda social
Com a Queda, a realidade social de Adão alterou-se radicalmente. Usando linguagem contemporânea, diríamos que a função social de Adão foi guardar e cultivar o Éden. Função adequada à coroa da Criação divina, trabalho dignificador, promoção social que Deus conferiu para o homem participar na manutenção da criação. O que se poderia chamar teologia do trabalho, a partir do livro do Génesis, radica nessa acção primordial de que Adão foi incumbido.
A instituição do trabalho, não como contribuição redentora, nem como castigo, mas como facto participativo da Criação, não deixou de sofrer o estigma do Pecado, da desarmonia que este introduziu na humanidade. Uma teologia do trabalho não parte de outro ponto. Deste ponto de vista, apreciando na narrativa genesíaca a voz divina, entendemos que da alegria, do gozo do trabalho, Adão caiu para a obrigatoriedade do mesmo. Foi o que Deus lhe quis dizer, nestas palavras divinas: “ maldita é a terra por tua casa: em fadiga obterás dela o sustento durante os dias de tua vida. Ela produzirá também cardos e abrolhos (…) No suor do rosto comerás o tu pão” (Gn3, 17-19).
Foi uma queda social que acompanhou toda a desarmonia da própria natureza. A acompanhar esta queda, esta nova situação do primeiro homem, esteve outra que lhe marcou doravante o seu novo lugar: fora do Jardim. A expulsão do Edén foi, indubitavelmente, uma tremenda queda social; Adão do Paraíso foi relegado para o Mundo.
“E expulso o homem colocou querubins ao oriente do jardim do Éden”.(Gn. 3, 24)

Ainda assim, a misericórdia divina colocou Adão no caminho de viver, se bem com a morte dentro de si. A vida e a morte, o bem e o mal, o espírito e a carne, como estruturantes da nossa humanidade.

Friday, July 15, 2011

Passagem por Samaria

!Y nadie sospechaba com qué temblor de urgencia
buscaba ella en la gente un resto de ternura!...
Andrés Quintanilla Buey



Diziam que ia ao poço
escondida sob o cântaro
que perdera já o olhar
varrendo o chão
a mulher samaritana
via apenas sombras
na água que do poço recolhia
ninguém suspeitava
que enchia de lágrimas o cântaro


Há quem diga que pecava
por um gesto de ternura
quando a rosa do sol incandescia
e trespassada de silêncio
se escondia, diziam
da mulher samaritana tanta coisa
ia ao poço para beber
da água repetida, na quietude frágil
da água, a sua vida.