Thursday, May 17, 2012

Dói-me Jerusalém


"Me duele España"
Miguel de Unamuno


Dói-me Jerusalém, os ossos
que ficaram pedra sobre pedra
dói-me o muro
onde os rostos se descascam
das lágrimas, onde os lábios
segredam
as Lamentações trágicas da vida
doem-me
as alturas desmedidas do Sinai
o frio das pedras
onde antes um fogo se acendia
dói-me a sarça extinta
e doem-me os sete braços
do candelabro, levado para Roma
por um preço insuportável.

16/5/2012

Wednesday, May 02, 2012

SEM SOLUÇÃO DE CONTINUIDADE O ÚLTIMO VERSÍCULO DE ACTOS

            

o derradeiro versículo do cap. 28 de Actos do Apóstolos não tem, felizmente, solução de continuidade. Não pesa nele a interrupção.

“ Pregando o reino de Deus, e ensinando com toda a liberdade as coisas pertencentes ao Senhor Jesus Cristo, sem impedimento algum”

Pese embora a referência da narrativa ser dirigida ao trabalho derradeiro do Apóstolo Paulo em Roma, a intertextualidade da diegese não é apenas particular, é universal no que concerne à Missão da Igreja e aos Actos do Espírito Santo, que não cessaram.

Este versículo permite muitas perguntas e outras tantas respostas, mas nenhuma dúvida.
O final não é apenas histórico, no que concerne à biografia de Paulo escrita por Lucas, é sobretudo teológico, e, como tal, de continuidade. É portanto demasiadamente claro.

Em comentários bíblicos abrangentes de todos os versículos do Novo Testamento, por exemplo, encontramos alguma unanimidade na interpretação.
Lucas pretendia escrever um terceiro volume( o seu Evangelho e os Actos, dois tomos de uma mesma obra) para registar o julgamento e libertação de Paulo – dizem uns; a narrativa dá como terminada a história naquela circunstância da prisão fora do cárcere (a já usada prisão domiciliária) de Paulo – propõem outros. Ou o “fim abrupto da história de Paulo”, conforme a opinião do teólogo Oscar Cullmann.

A verdade é que “Paulo estava restabelecido e a sua coragem reanimada pela graça(...); é ele quem encoraja, quem actua, sempre da parte de Deus, no meio de toda a cena”- escreve John Nelson Darby (J.N.Darby), num comentário com quase dois séculos aos Actos (1). E, facto importante e até curioso, a história da relação de Roma com o Evangelho, a pregação do Evangelho, faz-se com a prisão de Paulo nessa cidade imperial.

Paulo pregava o Reino de Deus e ensinava acerca de Jesus Cristo. E esta acção não foi nem é jamais o fim da História da Igreja, essa História presente é um contínuo de somas desde o Século I, enquanto a Igreja não for secretamente arrebatada por Jesus.

Uma intertextualidade literária

Atalhando caminho para uma intertextualidade clássica, uma vez que os capítulos 27 e 28 de Actos são especialmente considerados também clássicos, do nível literário, e.g.,da Odisseia (de Homero) ou, salvo melhor opinião, do Canto I, de Ezra Pound, permitam-me que cite a mim próprio:

“ No texto de Actos, o evangelista coloca a narrativa dentro da própria moldura da História e da biografia de Paulo, enquadrando-a nas circunstâncias políticas, religiosas e geográficas do seu tempo. (…) Particularmente, a descrição com todo o seu ambiente, sai dos mares jónicos e torna-se, por si própria, num dos únicos e mais importantes documentos históricos sobre um naufrágio. (...)Rigorosamente, as mesmas qualidades evidentes nos trechos das obras clássicas de Homero e Pound (separadas por quase três
milénios ) são notadas, também, na excelência do texto bíblico dos Actos dos Apóstolos.” (2)

O carácter daqueles dois capítulos não é porém a ficção, é a verdade. Mas Lucas usou expediente literário para nos indicar que o derradeiro versículo da sua narrativa, era uma porta não fechada. E poderia bem terminar em suspenso com um “Assim que...”, como o citado Ezra Pound utilizou para a sua parafrase (o Canto I, de “The Cantos”, sua obra-prima no século XX) do Canto ou Rapsódia nº XI da Odisseia de Homero.

“De modo que /Assim que”/ “So that:” -no original do poeta anglo-americano Pound- é um expediente cronológico que parece suspender para relançar a acção a seguir, uma passagem, uma ligação entre um passado e um futuro, em continuidade, que casou a poesia narrativa de Homero e a poesia lírica da Idade Média (3)
.
Por seu lado, o versículo inteiro e último de Actos é essencial para essa ligação, de um passado, de uma história que ainda decorre e do futuro. Parafraseando um verso célebre de Miguel Torga (do poema Dies Irae), todo o futuro está neste dia de hoje do versículo.

Crepúsculo, aparente, e Alvorada, apenas duas palavras com as quais podemos qualificar o versículo 31.

Mas é exactamente nas palavras que a continuidade e o futuro se perfilam, na afirmação final do autor evangélico sagrado, que as coisas pertencentes ao Senhor Jesus Cristo estavam a ser ensinadas, propagadas, “sem impedimento algum”.

Teremos de socorrer-nos do Novo Testamento Grego (4) e pôr em relevo os dois vocábulos finais: parrêsias, akôlutôs.

O que significam dá-nos a medida, o primeiro, de uma abertura de par em par pela qual se entra com ousadia; o segundo, que tal entrada e caminhar não têm obstáculos permanentes nem absolutos. O versículo derradeiro dos Actos dos Apóstolos é um final aparente que contém um princípio contínuo em si mesmo.
Sendo história humana estaria limitado ao tempo, anos, meses, horas, segundos, mas é História de Deus.

Não com o rigor da disposição cronológica das cartas paulinas no NT, que não existe, mas pelo posicionamento tradicional no Cânone, a epístola aos Romanos não sendo a primeira que ele escreveu e tão pouco a que redigiu na sua prisão na cidade imperial, é o seguimento natural do Ensino teológico concernente ao Reino de Deus e ao Evangelho de Jesus Cristo.
A carta aos Romanos é considerada mais Tratado de Teologia do que Epístola. E assim é que poderíamos ligar, com alguma liberdade respeitosa, o versículo 31 de Actos aos versículos 1 e depois 16 do cap. 1 de Romanos. E temos a razão da continuidade.
A raison d'étre da pregação do Evangelho de Deus é a História da Igreja.

______________________________________________________
(1) “Estudos sobre a Palavra de Deus”, Depósito de Literatura Cristã, 1987

(2) Revista “O Obreiro”, nº 26, Janº/Marº 1984, CPAD; e “Bara-Cadernos Culturais, III”, s/data

(3) A Odisseia, Homero, Canto XI, Biblioteca Editores Independentes, pág.180 ss, trad. Frederico Lourenço; “Os Cantos”, Ezra Pound, Editora Nova Fronteira, pág. 21 ss, trad.José Lino Grunewald.

(4) Novum Testamentum Graece, Nestle-Aland

(Texto a sair na revista "Novas de Alegria"